Jung e a Medicina chinesa (p.1): Uma aproximação

A relação psicologia analítica e com os diferentes modos de pensar (ciência, filosofia e religião) foi um fundamental para que meu interesse na psicologia analítica. Desde muito jovem, sempre me interessei pelo pensamento oriental, buscando compreende-lo a partir as poucas fontes acessíveis que tinha à época (danos 90) – revistas e livros. Na graduação em psicologia, na disciplina que em que comecei a estudar Jung – no ano 2000 – meu trabalho para disciplina “Personalidade III” foi associar ou discutir as figuras do Budha e do Sábio (no taoísmo) a partir da noção de individuação em Jung – algo extremamente pretencioso .

Recentemente, em 2020 a relação com o pensamento oriental e a psicologia analítica ganharam novos contornos para mim. Buscando aprofundar os estudos em psicossomática iniciei uma especialização de Acupuntura Clássica Chinesa. A partir dessa experiência prática com a acupuntura/medicina chinesa e desses mais de 20 anos estudando a psicologia parto as reflexões desse post e dos que virão.

Jung e o Oriente

Ao longo de toda vida Jung manteve uma relação intressante com o Oriente. Em suas Memórias(JUNG,2000 p.30) relatou o quanto, ainda criança, ficou impactado com das imagens do Orbis Pictus, livro que retratava imagens de religiões exóticas, espcialmente da India. A relação de Jung com o oriente não era de pesquisador “autodidata”, pelo contário, ele tinha como amigos e correspondentes importantes estudiosos como sinólogo Richard Wilhelm, indólogo Heinrich Zimmer, o historiador das religiões Mircea Eliade, D.T. Suzuki grande especialista em Zen Budismo, Jakob  Hauer, indólogo dentre outros.

Essa relação com o pensamento oriental é bem retratada e representada em sua obra com prefácios/comentários à livros importantes como o I Ching, Introdução ao Zen Buddhismo, Bardo Thodol (equivocadamente chamado de “Livro Tibetano dos Mortos”), O Segredo da Flor de Ouro e o “The Psychology of Kundalini Yoga”- que não faz parte das Obras Completas, e ainda sem tradução para o português, foram seminários dados por Jung em 1932.

Jung não se relacionava apenas com intelectualmente com oriente. Ele próprio relatou em suas Memórias que após a ruptura com Freud ele passou por um período de instabilidade interior – iniciando o período que ficou conhecido como “Confronto com o inconsciente” , período entre 1914-1918.

” Sentia-me muitas vezes de tal forma agitado que recorri a exercícios de ioga para desligar-me das emoções. Mas como o meu intuito era fazer a experiência do que se passava em mim, só me entregava a tais exercícios para recobrar a calma, a fim de retomar o trabalho com o inconsciente. Quando readquiria o sentimento de mim mesmo, abandonava o controle e cedia a palavra às imagens e vozes interiores. Os hindus, pelo contrário, utilizam a ioga com a finalidade de eliminar completamente a multiplicidade das imagens e dos conteúdos psíquicos.” JUNG, 1987, p.157-8)

As práticas corporais como yoga tem efeito de regulação emocional importante e são um dos pilares dos sistemas terapêuticos orientais. Não se sabe qual sistema de yoga Jung estudou ou praticava. Ao se referir as práticas chinesas tanto corporais e qunato meditativas Jung utilizava o termo de “ioga chinesa” – a que acreditamos se ele se referia ao Qi Gong (Qi Kung). O fato que gostaríamos de chamar a atenção é que Jung teve um contato com o pensamento taoísta sobretudo voltado à filosofia e a noção religiosa. Um dado importante é considerar que Jung não teve experiência com a complexidade dos sistemas médicos orientais – como a medicina ayurveda ou da medicina chinesa.

O questionamento que nos norteia é :

E se Jung tivesse conhecido a medicina chinesa?

A Medicina Chinesa

A medicina chinesa se refere a um conjunto de práticas de cuidado e tratamentos que teve origem há cerca de 5 mil anos na China. Atualmente a medicina chinesa é dividida em dois períodos: clássica e tradicional.

A medicina chinesa clássica compreende o período que abarca as raízes ancestrais até 1949, com a da fundação da Republica Popular da China. Medicina chinesa “clássica” representava um amplo conjuntos de praticas não sistematizadas (que variavam de acordo com a família e a região) que mesclava práticas médicas, com crenças mágicas, práticas religiosas e xamânicas. Com revolução comunista teve inicio uma “revisão” das práticas médicas chinesas separando as práticas religiosas(rituais, exorcismos, práticas divinatórias etc) e aproximando da medicina ocidental que foi oficializada em 1958 por Mao Tsé-Tung com o nome Medicina Tradicional Chinesa (CONTATORE, TESSER e BARROS, 2018).

O processo de revisão e hibridização da medicina chinesa com a ocidental não foi sem problemas, com a Revolução Cultural que teve inicio em 1966, muitos livros clássicos de famílias foram queimados, muitos mestres humilhados e mortos, conhecimentos milenares de famílias foram perdidos. Deste modo, não se têm mais a medicina clássica chinesa em sentido amplo, o que temos hoje é a Medicina Tradicional Chinesa, naturalmente algumas estratégias clássicas de tratamento foram salvas do expurgo da Revolução Cultural em ainda presentes em algumas escolas de acupuntura, de práticas corporais/meditativas que se alinham com o pensamento contemporâneo. A Medicina Tradicional Chinesa é frequentemente objeto de estudos visando estabelecer “explicações” para a eficácia destes métodos e técnicas milenares – em muitos casos a eficácia não encontra explicação na ciência ocidental.

A medicina chinesa possui cinco pilares fundamentais:

  • Exercícios Terapêuticos ( Qigong, Tai Chi Chuan)
  • Tui Ná (massagem)
  • Dietoterapia
  • Fitoterapia
  • Acupuntura

As bases conceituais da Medicina Tradicional Chinesa encontram-se especialmente no pensamento taoísta com a teoria dos Yin e Yang, Cinco movimentos. Comentaremos em outros posts as relações com a psicologia analítica.

Medicina Tradicional Chinesa :: Sabedoria Política

Aproximações

A psicologia analítica e a Medicina Chinesa pertencem a dois universos culturais distintos. Contudo, existem pontos fundamentais que permitem pensarmos a aproximação entre esses dois universos. Acredito, A visão do mundo Jung dialoga bem com a medicina chinesa. Jung apresentava com cautela a noção de unus mundus – (mundo uno) – uma compreensão integrada e sistêmica onde tudo está em continua interrelação.

Com a aceitação de uma identidade do psíquico e do físico, aproximamo-nos da concepção do unus mundus (mundo uno) dos alquimistas, aquele mundo potencial do primeiro dia da criação, quando ainda nada existia de separado. (…) Sem dúvida alguma, a ideia do unus mundus se baseia na suposição de que a multiplicidade do mundo empírico repousa no fundamento da unidade dele, e de que dois ou mais mundos separados, por princípio, não podem coexistir nem estar misturados entre si. Conforme essa opinião, tudo o que há de separado ou diferente pertence a um e mesmo mundo, que entretanto não cai sob os sentidos, mas representa um postulado, cuja probabilidade é corroborada pelo fato que até agora ainda não se conseguiu algum outro mundo, no qual fossem invalidadas as leis naturais conhecidas por nós. Que também o mundo psíquico, tão extraordinariamente diferente do físico, não esteja fundamentado fora do cosmo, se deduz do fato inegável que entre a alma e o corpo há um relacionamento causal, que aponta para uma natureza fundamentalmente uniforme da parte deles. (JUNG, 2012, p.363-4)

Distinguishing Synchronicity from Parapsychological Phenomena

A noção de mundo uno, de realidade integrada, teve inspiração na alquimia mas ganhou relevancia nos estudos sobre a sincronicidade em parceria com W. Pauli. Para a medicina chinesa Elisabeth Rochat de La Vallée afirma que “O cosmos é concebido como um todo em autoprodução permanente e em autorregulação perfeita, mesmo que se produzam irregularidades naturais ou perturbações devido a interferência humana”. (VALLÉE, 2019, xi). A integração com a natureza é percebida pela compreensão do corpo que é compreendido a partir dos movimentos do cosmos.

Outro aspecto que podemos considerar, é a visão de homem. Não há uma algo que podemos chamar “psicologia chinesa” constituida nos livros clássicos, isto porque os não há uma separação entre corpo e psique como nos habituamos no ocidente. Os chineses compreendiam que a mente e as emoções eram instrinsecas ao corpo, como aspectos qualitativos e energéticos dos órgãos do corpo. As emoções seriam um aspecto qualitavo da energia de cada orgão (associada à caracteristica de cada movimento/elemento correspondente ao orgão). De forma que todo dos processos da vida são psicossomáticos. O individuo é compreendido em sua integridade.

Jung compartilhava a mesma visão integrada de corpo e psique, contudo como seu enfoque eram os processos psiquicos, o corpo ou componentes psicossomáticos não aparecem em primeiro plano em sua obra, embora estivessem na base de sua compreensão (desde seus estudos psicofisicos acerca dos complexos).

(…)Claro, é preciso vincular o corpo ao self, porque o corpo distinto é a aparência distinta do self no espaço tridimensional, embora ainda seja uma função como a mente. Você não pode dizer que a mente é uma função do self sem admitir que o corpo também é uma função do self. (..) Mas o corpo é, naturalmente, também uma concretização, ou uma função, daquela coisa desconhecida que produz a psique tanto quanto o corpo; a diferença que fazemos entre a psique e o corpo é artificial. Isso é feito para uma melhor compreensão. Na realidade, não há nada além de um corpo vivo. Esse é o fato; e a psique é tanto um corpo vivo quanto o corpo é a psique viva: é exatamente a mesma coisa. (JUNG, 1997, p.113-4 – Tradução e grifos nossos)

A compreensão integrada do individuo (corpo-psique) compartilhada por Jung e a medicina chinesa conduz a um outro aspecto da importante que é a noção de equilibrio e homeostase baseada num principio dinâmico de autorregulação. Para Jung a autorregulação se daria através do equilibrio das relações entre a consciência e inconsciente – que envolveria tanto processos simbólicos/integrativos e processos defensivos – que abarariam os processos de somáticos.

66 Wooden Gong Illustrations & Clip Art - iStock

Na medicina chinesa temos um intrincado sistema de autorregulação que envolve duas teorias complementares a teorias do Yin e Yang e a do Wu Xing ou a teoria dos cinco movimentos / elementos (madeira-fogo-terra-metal-agua) com ciclos de geração e dominancia. Como necessita de uma explicação mais extensa vamos abordar essa concepção num post futuro.

As aproximações e possibilidades de dialogo entre o pensamento junguiano abrem um caminho importante para pensarmos o corpo, psicossomática e as possibilitades que a medicina chinesa – e as práticas integrativas e complementares à saúde – oferecem para uma compreensão mais ampla dos processos de saúde.

Nos próximos posts comentarei outros elementos da medicina chinesa que contribuem com a psicologia analítica, especialmente relacionado com uma concepção mais ampla da psicossomática.

Referências Bibliográficas

JUNG, C. G., Memórias Sonhos e Reflexões, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987

JUNG, C.G, Mysterium Coniunctionis v.2, Rio de Janeiro: Petrópolis, 2012.

JUNG, C.G, Natureza da Psique, Rio de Janeiro: Petrópolis, 2020.

JUNG,  Carl  Gustav.  Jung’s  seminar  on  Nietzsche’s  Zarathustra.  Editado  e  resumido  por James  L.  Jarrete.  Prefácio  de  Willian  McGuire.  Princeton/NJ:  Princeton  University  Press, 1997.

Contatore, Octávio Augusto, Tesser, Charles Dalcanale e Barros, Nelson Filice deMedicina chinesa/acupuntura: apontamentos históricos sobre a colonização de um saber. História, Ciências, Saúde-Manguinhos [online]. 2018, v. 25, n. 3 [Acessado 25 Março 2022] , pp. 841-858. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-59702018000400013>. ISSN 1678-4758. https://doi.org/10.1590/S0104-59702018000400013.

——————————————————–

Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

Esta entrada foi publicada em Uncategorized e marcada com a tag , , , , , , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe uma resposta