A Transferência na Psicologia Junguiana – Parte 1/2

Nota: Como temos edições das Obras Completas de Jung que não coincidem na paginação, vou utilizar como referência os parágrafos.

A relação de transferência e contratransferência (T/CT) é de vital importância para a prática da clínica. Apesar disso, na literatura junguiana não vemos tanto enfoque que esse tema mereceria, isso se deve a posição ambivalente que Jung tinha em relação a T/CT. Nesse texto eu gostaria de abordar tanto a visão do Jung acerca da transferência quanto as contribuições de Michael Fordham. Na segunda parte, vamos discutir um pouco sobre a contratransferência e na terceira sobre o campo transferencial .

Jung e a Transferência

As afirmações de Jung acerca da transferência mudaram de acordo com a evolução da teoria, as concepções iam do aspecto fundamental da transferência até considerá-la um estorvo. Nessa evolução eu vou destacar três momentos:

1916 – No texto “A função transcendente” Jung apresenta uma noção extremamente importante, onde aponta na transferência um aspecto prospectivo e sintético da transferência indicando a relação com o desenvolvimento psíquico.

“Por isto, na prática é o médico adequadamente treinado que faz de função transcendente para o paciente, isto é, ajuda o paciente a unir a consciência e o inconsciente e, assim, chegar a uma nova atitude. Nesta função do médico está uma das muitas significações importantes da transferência: por meio dela o paciente se agarra à pessoa que parece lhe prometer uma renovação da atitude; com a transferência, ele procura esta mudança que lhe é vital, embora não tome consciência disto.” (Jung, 2000, pr. 145)

1935 – Nas conferências de Tavistock, chamadas de “Fundamentos da Psicologia analítica” Jung emitiu uma das opiniões mais contundentes contrarias a transferência.

“transferência é sempre um estorvo, jamais uma vantagem. Cura-se apesar da transferência e não por causa dela” (…) Não há necessidade de transferência, como também não a há de projeção. Logicamente ela aparece independentemente disso. As pessoas sempre têm projeções, mas nunca a espécie que é esperada. Já leram Freud sobre esse aspecto, ou já estiveram com outros analistas. E foi-lhes enfiado na cabeça que deverão ter transferência, ou jamais serão curadas. É a maior das asneiras dizer uma coisa dessas. A cura não depende nem da ausência, nem da existência dela. (…) Se ela não existir, tanto melhor; o material surgirá da mesma forma.” Jung, 2000a, pr.349;351)

Alguns autores compreendem esta afirmação contextualizando com o momento das conferências, onde Jung teria um direcionamento e a plateia queria ouvir sobre a transferência, que o desagradou. De qualquer modo, este posicionamento gerou uma percepção negativa acerca da transferência, especialmente por que as conferências de Tavistock são consideradas textos introdutórios mais relevantes à psicologia analítica.

1945 – Já na obra “Psicologia da Transferência”, Jung abordou o tema de uma forma ampla discutindo os fundamentos arquetípicos da transferência a partir da gravuras do rosarium philosophorum. Nesse trabalho Jung afirma

“Apesar de eu ter, inicialmente, atribuído uma importância suprema a transferência, como FREUD, tive de reconhecer,  à medida que minhas  experiências se multiplicavam, que até esta importância é relativa. A transferência pode ser comparada  àqueles medicamentos que para uns são remédio e, para outros puro veneno. A sua ocorrência significa em certos casos uma mudança para melhor, em outros, um entrave, um peso, ou coisa pior, e num terceiro caso, finalmente, pode ser relativamente irrelevante. Entretanto, é quase sempre um fenômeno crítico, que brilha nas mais diversas cores, e a sua ocorrência é tão significativa quanto sua não ocorrência.” (Jung, 1999 prologo – p. 35)

Nesse aspecto a visão do Jung se torna bem mais moderada, reconhecendo perspectivas distintas em relação à transferência. Essa “importância relativa” dada a transferência reverberou influenciando a forma de pensar clássica da psicologia analítica – também chamada de Escola de Zurique. Roberto Gambini, analista formado em Zurique, em seu livro “A voz e o Tempo” comenta acerca da transferência dizendo

A transferência é o desafio supremo da análise. Não existe receita. Às vezes ela é uma carga  pesadíssima, ás vezes não pesa nada, em alguns casos atrapalha, em outros ajuda. Seja como for, em toda terapia o analista está carregando para o paciente algum aspecto que este não consegue integrar e que talvez ainda nem esteja manifesto. Então é inevitável que um faça algo pelo outro, represente algo para o outro. Não se trata evidentemente de dar conselhos ou resolver problemas práticos do paciente, tarefa esta mais adequada a uma terapia ocupacional. Na esfera psíquica, alguém precisa cuidar do que ainda não nasceu e essa tarefa é do analista. Depois que veio à luz, começa-se cuidadosamente entregar o bebê para a mãe. O trabalho mais importante é na realidade aquele feito com o feto, quando só o terapeuta tem condições de enxergar e valorizar aquilo que ainda não tem cara nem nome. Portanto, aceito sentimento como dependência, gratidão, amor, cobrança, raiva, desejo de exclusividade e de atenção especial, por considerá-los como inevitáveis nessa fase de gestação. O grande teste para um analista é a hora que ele constata que consegue suportar o peso e a responsabilidade da transferência. Às vezes uma questão transferencial, como vimos, é apontada por um sonho – então aborda-se diretamente o assunto. Caso contrario, o estilo junguiano, pelo menos segundo a Escola de Zurique, é ir vivendo o processo sem falar exaustivamente dele. Deixa-se acontecer, observa-se. Se o paciente for terapeuta, este igualmente pode se abrir com toda coragem e sinceridade. Não esmiuçamos a transferência, ficamos com a ferida doce. ( GAMBINI, 2008 ,p.110-111)

Apesar do valor “relativo” que Jung atribuía à transferência, ele fez contribuições importantes para a compreensão da transferência. Warren Steinberg, comenta essas contribuições no livro “Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana” destacando cinco aspectos:

– Objetivo da transferência: Para Jung a transferência teria um objetivo relacionado com ao processo de individuação. Por meio da transferência, os complexos, as dinâmicas (de apego e objetais) viriam à cena possibilitando a transformação do ego. A elaboração da transferência conduziria ao amadurecimento, a uma nova possibilidade de relação com o inconsciente. Assim, o conteúdo objetivo, infantil e histórico do complexo vivido na transferência se abre para a concepção subjetiva, atual e prospectiva que concerne à individuação.

– Compensação: Steinberg aponta que “a transferência, assim como neurose, é uma tentativa de autocurar-se, o sistema psíquico lutando por equilíbrio” (STEINBERG, 1992, p.13). A transferência pode compensar uma atitude unilateral do ego, resistências e defesas que se encontram fixadas ao longo da história do individuo – possibilitando uma perspectiva e espaço para a integração dos conteúdos que foram excluídos e negados pela dinâmica do ego.

Empatia: O paciente internaliza a figura do analista, muitas vezes, com as pontuações e características – as vezes, reproduzindo trejeitos, expressões e vícios de linguagem – essa identidade visaria o desenvolvimento de uma atitude própria, uma atitude analítica correlata a observada no analista. De outro modo, essa internalização expressaria a ativação do “analista interior” (presente na dinâmica do curador-ferido).

Relacionamento: O relacionamento analítico seria um relacionamento pessoal num enquadre impessoal, protegido e capacitador. Isso porque o individuo neurótico tem dificuldade de estabelecer relacionamentos saudáveis. Na medida que o analista sustente a relação, maneje a transferência, o paciente poderia sair do padrão criado pelos relacionamentos familiares/infantis.

Transferência arquetípica: Jung notou que em alguns casos a retiradas projeções e a elaboração da transferência infantil não liberava energia para a consciência/ego para adaptações exteriores, antes essa energia regredia ao inconsciente ativando formas arquetípicas, que eram transferidas para o analista. Jung compreendeu que esse processo envolvia uma adaptação mais profunda isto é, o processo de individuação.

As contribuições de Jung se tornaram diluídas na compreensão da relação terapêutica, na presença do analista, não focando no conteúdo ou na compreensão da transferência em si ou valorizando a interpretação.

Fordham e a Transferência

Michael Fordham foi sem a menor dúvida um dos maiores pensadores junguianos, poucos se igualam em profundidade, amplitude e criatividade. A transferência/contratransferência – no cerne da técnica junguiana – ocupou um lugar especial na construção teórica de Fordham.

Em seu trabalho seminal “Notes on the transference” de 1957, Fordham indica o distanciamento da obra de Jung da temática da transferência (especialmente por este enfatizar a personalidade do terapeuta/analista), neste trabalho ele inicia uma sistematização acerca da transferência que vai reverberar e fundamentar muitas concepções e técnicas da psicologia analítica.

Fordham compreendia que transferência, e consequentemente sua análise, seria importante para transformação da personalidade pois a energia que era destinada a neurose gradativamente seria destinada ao analista por meio da transferência – o que possibilitaria a transformação e saída da neurose. Fordham apontou a necessidade de discriminarmos três tipos de transferência: Dependente; delirante e a arquetípica.

A transferência Dependente ou neurótica se caracteriza pela repetição de padrões infantis ou de padrões neuróticos. Nesta modalidade o conteúdo histórico dos complexos (em especial os parentais) são projetados sobre o analista de modo serem revividos e integrados. Nesses casos a “análise/interpretação redutiva” se torna essencial para integrar os complexos, dinâmicas arquetípicas essenciais para a autonomia e amadurecimento do individuo.

A transferência delirante ou psicótica há o rompimento da realidade com o analista, onde o mesmo é envolvido no delírio do paciente, a indistinção da realidade do analista impede que a realidade externa ou as intervenções/interpretações tenham espaço. A transferência delirante pode se manifestar em interpretações/julgamentos que o paciente atribui ao analista assim como pela intensidade afetiva direcionada ao analista – esta mobilizada por elementos pré-simbólicos ou psicóides ainda incessíveis ou não elaboráveis ao ego.

A transferência arquetípica é noção bem peculiar na abordagem junguiana. Como dito acima, em alguns casos após elaborada a transferência infantil a energia ativa camadas mais profundas. A transferência arquetípica possui um energia diferenciada, imagens grandiosas, que não se referem a experiência pessoal,

“a transferência arquetípica tem duas características que a pessoal não possui: as projeções são mais claramente partes do Self que precisam ser integradas. eles também são progressivos e contêm material através do qual a individuação pode ocorrer. O reconhecimento dessas características é concebido como importante porque a interpretação analítica não pode ser aplicada: as entidades primárias foram alcançadas.” FORDHAM,1986, p. 84.

Nessa perspectiva, a transferência arquetípica possibilita que deintegrados sejam vivenciados e reintegrados possibilitando o processo de individuação.

Jung compreendeu que transferência não seria um processo unilateral, sua manifestação também produziria uma reação do analista – a contratransferência. Essa relação T/CT entre analista e paciente estariam para além do campo consciente, numa relação que envolve a consciência e o inconsciente. A partir das imagens do Rosarium philosoforum ele apresentou um modelo próprio para compreender o a dinâmica da transferência.

Virtual Art Gallery of Alchemical Emblems

No próximo post, apresentaremos a contratransferência onde poderemos discutir de fato o campo transferencial.

Referências bibliográficas:

Fordham, M. New Developments in Analytical Psychology, London: Routledge and Kegan Paul, 1957.

Fordham, M, Jungian Psychotherapy, Maresfield: London, 1986.

GAMBINI, R. A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.

JUNG, C.G. Vida Simbólica Vol. I, Petrópolis: Vozes, 2000.

JUNG, C.G. Natureza da Psique, Vozes:Petrópolis, 2000a.

JUNG, C.G.Ab-reação, análise de sonhos, transferência, Vozes: Petrópolis, 4 ed. 1999b

STEINBERG,W. Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana, São Paulo: Cultrix, 1992.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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